Vacinação em Moçambique: a experiência dos cinco primeiros anos após a Independência. Um testemunho na primeira pessoa

  • Hélder F. B. Martins Médico especialista e Professor Emérito de Saúde Pública. Doutor Honoris Causa em Ciências da Saúde e da Educação; ex-Ministro da Saúde da República Popular de Moçambique (1975-80); ex-funcionário sénior da OMS (1985-96); ex-membro de vários comités de peritos da OMS. Maputo, Moçambique.
Palavras-chave: Descolonização das vacinas, erradicação da varíola, mobilização comunitária, PAV, persuasão, tradição africana, vacina, vacinação compulsiva

Resumo

O autor começa por mostrar que na época colonial não havia nenhum programa de vacinação sistemática, só se fazendo vacinações quando surgia notícia de epidemias. Nessas circunstâncias, as autoridades coloniais praticavam campanhas de vacinação maciça e obrigatória, sem qualquer explicação às populações das vantagens, sendo elas forçadas a serem compulsivamente vacinadas.

O autor descreve também o conceito de «vacina» na tradição cultural africana, como «qualquer coisa que se toma para prevenir algo», que pode ser uma doença, uma infelicidade amorosa, insucesso nos negócios ou um azar na vida. Ele mostra como na tradição africana a «vacina» é um preventivo genérico.

Depois, o autor explica que, durante a Luta de Libertação Nacional, nos anos 60 do século XX, quando tiveram conheci- mento de alguns casos de varíola e, mais tarde, de cólera, nas zonas ocupadas pelo colonialismo, fizeram campanhas de vaci- nação antivariólica e anticolérica às populações das zonas semilibertadas, que estavam no controlo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Também explica como tiveram que fazer um grande trabalho de mobilização e de explicação às pessoas, para aderirem à campanha de vacinação. A esta mudança de atitude em relação às vacinações o autor chamou de «descolonização das vacinas». Vacinaram numa ocasião, cerca de 250.000 pessoas e, mais tarde, cerca de 800.000.

O autor descreve, detalhadamente, como as vacinações foram consideradas prioritárias, ainda no período de Transição para a Independência e, depois no imediato pós-Independência (quando o grande princípio e a palavra de ordem era: «promoção da Saúde da comunidade pela própria comunidade») e as negociações realizadas, com sucesso, com a Organização Mundial de Saúde (OMS), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para o financiamento do Programa Alargado de Vacinação (PAV), precedido por uma campanha nacional de vaci- nações. Descreve também as dificuldades havidas pelo facto da OMS ser contra campanhas, naquela altura, em que o PAV tinha sido recentemente aprovado na Assembleia Mundial da Saúde (AMS) e as resultantes do calendário, para admissão de Moçambique na Organização das Nações Unidas (ONU) e na OMS, e como essas dificuldades foram ultrapassadas. Descre- ve também por que razão para «descolonizar as vacinas» era necessária uma vacina para toda a população, a vacina antivarió- lica, que estava fora do PAV, e como foi convencido o Director Geral da OMS a aceitar incluí-la na campanha.

A campanha nacional de vacinação iniciou em 14 de Janeiro de 1976, na Província de Niassa, e terminou na Cidade de Maputo no dia 2 de fevereiro de 1978. Não havendo pessoal suficiente, para vacinar em todo o país ao mesmo tempo, vaci- naram três províncias de cada vez. Em cada província onde a campanha terminava, começava logo o PAV de rotina. O autor não esconde que, no início, o PAV teve muitas dificuldades de implementação, que foram sendo gradualmente resolvidas. Nesta campanha, foram vacinadas quase onze milhões de pessoas contra a varíola, cerca de um milhão e meio de crianças contra o sarampo, mais de cinco milhões de crianças e adolescentes pelo BCG (contra as complicações letais da tuberculo- se) e cerca de dois milhões de mulheres em idade fértil, contra o tétano, tendo sido atingida uma taxa de cobertura de 97% (calculada pelos peritos da OMS e UNICEF).

O autor conclui que Moçambique foi capaz de «descolonizar as vacinas», pois soube construir sobre os aspectos positivos da tradição africana e assim atingiram o grande objectivo, de que a população passasse a ver as vacinações como um instru- mento de defesa e promoção da sua própria Saúde e não como uma imposição colonial, ao serviço da Saúde dos colonos. Finalmente, o autor traça breves notas sobre o desenvolvimento do PAV nos anos subsequentes.

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Referências

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Publicado
2022-10-22
Como Citar
1.
F. B. Martins H. Vacinação em Moçambique: a experiência dos cinco primeiros anos após a Independência. Um testemunho na primeira pessoa. ihmt [Internet]. 22Out.2022 [citado 15Jul.2024];21:14-6. Available from: https://anaisihmt.com/index.php/ihmt/article/view/425