Evolução do ensino médico universitário na República da Guiné-Bissau 1985-2020

  • Cátia Sá Guerreiro Centro Colaborador da OMS para Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde, GHTM, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa. Portugal
  • Clotilde Neves Ministério da Saúde Pública da Guiné-Bissau. Guiné-Bissau
  • Augusto Paulo Silva Instituto Oswaldo Cruz, Brasil
  • Paulo Ferrinho Centro Colaborador da OMS para para Políticas e Planeamento da Força de Trabalho em Saúde, GHTM, Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa. Portugal
Palavras-chave: Formação médica universitária, cooperação cubana, colonialidade, realismo africano, recursos humanos da Saúde, República da Guiné-Bissau

Resumo

Introdução: A República da Guiné-Bissau (RGB) apresenta um cenário de escassez e mal-distribuição dos recursos humanos da saúde (RHS). O ensino médico surge na RGB na década de 1980, destacando-se a Faculdade de Medicina Raúl Díaz-Argüelles García (FM), tutelada pela cooperação cubana. O presente trabalho teve por objetivo contribuir para uma proposta de oferta formativa mais adequada às necessidades deste Estado, partindo da análise do que se tem feito e dos resultados da implementação de iniciativas formativas, enquadrando-a nas tensões entre a colonialidade das parcerias internacionais e o realismo africano.

Materiais e métodos: Seguiu-se um modelo lógico construído para o efeito, recorrendo a uma abordagem de métodos mistos. Os dados foram recolhidos com recurso a um questionário misto aplicado a alunos do curso de medicina; a entrevistas semiestruturadas a atores chave em matéria de formação de RHS; a um grupo focal com personalidades ligadas ao ensino e gestão de RHS; a revisão narrativa da literatura publicada sobre a matéria; e a análise de documentos oficiais relacionados com o tema. Procedeu-se a análise de conteúdo dos dados qualitativos obtidos. Foram definidas seis categorias de análise de acordo com o modelo lógico do estudo. Procedeu-se a análise estatística descritiva dos dados quantitativos obtidos nos questionários. A apresentação de resultados e consequente discussão foram orientadas pelo modelo lógico do estudo.

Resultados e discussão: A RGB vive a realidade descrita para grande parte dos estados africanos que passa pela colonialidade do saber e dos mercados; limitada capacidade de formação de recursos humanos da saúde; falta de políticas adequadas para profissionais de saúde; e ausência de planos de formação em recursos humanos da saúde. Verifica-se um desfasamento entre produção e necessidades destes recursos, bem como entre qualidade e quantidade de quadros formados, realidades que espelham falhas de planeamento. Na sequência do contexto complexo observado, e associado à intervenção de atores dominante e relações de poder entre estes, a evolução do ensino médico na RGB resulta de uma convergência de planeamento estratégico deliberado e do reconhecimento de estratégias emergentes. A estratégia deliberada reflete-se de duas formas: num contexto de colonialidade, na tentativa deliberada de entrada de atores internacionais – concretamente a cooperação cubana; ou, numa perspetiva pan-africana de harmonização regional da formação. São conhecidas as limitações associadas à falta de um planeamento estratégico deliberado por parte da RGB. Apesar da proposta da CEDEAO para uma convergência regional em matéria de formação de RHS, na RGB sobressai a posição de colonialidade do ensino médico a par com um currículo académico não adaptado à realidade guineense.

Conclusão: A urgência da necessidade de a RGB desenvolver uma estratégia e um compromisso público com o ensino universitário, permitindo uma maior integração regional e uma oferta mais sustentável da formação médica, torna-se a grande conclusão deste trabalho. As soluções encontradas terão de ter em conta um contexto particularmente complexo e de grande fragilidade das instituições deste Estado, numa aposta de desconstrução da colonialidade do conhecimento, assumindo o realismo africano.

Downloads

Não há dados estatísticos.

Referências

Ferrinho P, Fronteira I. Enfrentamento da Pandemia no Universo da Comunidade dos Estados e Territórios de Língua Oficial Portuguesa: Aprendizados Para os Sistemas de Saúde. Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Brasília, Brasil; 2021. page 189–212.

Robalo M. A Primeira Onda COVID-19 nos Estados-membros da CPLP: o caso da GB. In: O enfrentamento da COVID-19 nos países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Brasília, Brasil:Conselho Nacional de Secretários de Saúde.: Série LEIASS (Linha Editorial de Apoio aos Sistemas de Saúde); 2020.

Fragile States Index 2020 – Annual Report | Fragile States Index [Internet]. [cited 2021 Mar 10];Available from: https://fragilestatesindex.org/2020/05/08/fragile-states-index-2020-annual-report/

Ministério da Saúde Pública da República da Guiné-Bissau. Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2018-2022 - PNDS III. 2017.

Ministério da Educação da Guiné-Bissau, UNICEF, UNESCO. Relatório do estado do Sistema Educativo para a reconstrução da escola da Guiné-Bissau sobre novas bases. 2015.

Ministério da Economia, do Plano e da Integração Regional da República da Guiné-Bissau. Deuxième Document de Stratégie Nationale pour la Réduction de la Pauvreté-DENARP II 2011-2015. Bissau: 2011.

Messner JJ, Haken N, Taft P, Blyth H, Maglo M, Fiertz C, et al. The Fragile States Index 2018. The Fund for Peace; 2018.

Guerreiro CS, Hartz Z, Neves C, Ferrinho P. Training of Human Resources for Health in the Republic of Guinea-Bissau: Evolution of Structures and Processes in a Fragile State. Acta Médica Port 2018;31(12):742–53.

Fronteira I, Seca A, Meneses A, Ferrinho P, Lapão L. Expectativas profissionais dos estudantes de enfermagem de nível superior = Professional expectations of middle level and superior level nursing students:: evidência de dois países da África Subsariana = evidence from two sub-saharan african countries. An Inst Hig Med Trop (Lisb) 2014;13:59–67.

Fronteira I, Sidat M, Fresta M, Sambo M do R, Belo C, Kahuli C, et al. The rise of medical training in Portuguese speaking African countries. Hum Resour Health [Internet] 2014 [cited 2020 Apr 25];12. Available from: https://www. ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4232702/

Fresta MJ, Ferreira MA, Delgado AP, Sambo MR, Torgal J, Sidat M, et al. Estabelecimento de uma rede estruturante da cooperação em educação médica, no âmbito do PECS-CPLP. An Inst Hig Med Trop (Lisb) 2016;15:27–34.

Dussault G, Fronteira I. Análise dos recursos humanos da saúde (RHS) nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP). WHO; 2010.

Ballestrin L. Colonialidade e Democracia. Rev Estud Políticos 2019;5(9):191–209.

Ngunyulu RN, Sepeng N, Moeta M, Gambu S, Mulaudzi FM, Peu MD. The perspectives of nursing students regarding the incorporation of African traditio- nal indigenous knowledge in the curriculum. Afr J Prim Health Care Fam Med [Internet] 2020 [cited 2021 Apr 21];12(1). Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7203236/

Buse K, Mays N, Walt G. Making Health Policy. McGraw-Hill Education; 2012.

Quijano A. Colonialidad y modernidad/racionalidade. Perú Indígena 1992;13(29):11–20.

Shorten A, Smith J. Mixed methods research: expanding the evidence base. Evid Based Nurs 2017;20(3):74–5.

Marconi M, Lakatos E. Fundamentos de metodologia científica. 2aEd. São Paulo: Editora Atlas; 2007.

Flick U. Métodos qualitativos na investigação científica. Lisboa: Monitor; 2005.

Trad LAB. Focal groups: concepts, procedures and reflections based on practical experiences of research works in the health area. Physis Rev Saúde Coletiva 2009;19(3):777–96.

Zappellini MB, Feuerschütte SG. O uso da Triangulação na Pesquisa Científica Brasileira em Administração. Adm Ensino E Pesqui 2015;16(2):241–73.

Bardin L. Análise de Conteúdo. 5a. Lisboa: Edições 70, Lda.; 2008.

Marôco J. Análise Estatística com o SPSS Statistics. 5a. Pero Pinheiro: 2011.

Langa P. Chapter 4. Guinea-Bissau in Higher Education in Portuguese Speaking African Countries. In: A five country baseline study. South Africa: African Minds; 2013. page 48–50.

Cisneros S, Matilde M. Cooperación técnica entre países en vías de desarrollo: Experiencia Cuba-Guinea Bissau. Educ Médica Super 1996;10(1):9–10.

Té F. Políticas Educativas na Guiné-Bissau: estudo longitudinal dos ensinos básico e secundário. Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciência Política. 2017.

Correia JDG, Ferrinho P, Andrade L. Citizens’ trust in the health care institutions as a neglected dimension in strategic health planning data from Guinea-Bissau. Int J Health Plann Mgmt 2021.

Santiesteban Pérez I, Monjes Leyva K, Ferrán Torres RM. La Cooperación Internacional de Cuba en la docencia Médica Superior, vía posible para una cobertura universal de Salud. Educ Médica Super 2017;31(2):0–0.

Gallardo Sánchez Y, Núñez Ramírez L. Lecciones aprendidas del proceso formativo en la carrera de Medicina en Guinea Bissau. Edumecentro 2018;10(2):210–6.

Silva AP, Cardoso P, Neves C, Ferrinho P. Função “recursos humanos” no Sector da Saúde da Guiné-Bissau. Ponto de Situação e Recomendações de Acções e Objectivos a integrar num segundo Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2008-2012. 2008.

Ferrinho P. Subsídios para a Revisão do Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2008-2017 até 2020 - apreciação da sua implementação em Agosto de 2015 e contribuição para um roteiro para a sua revisão. Bissau: 2015.

Bedoll D, van Zanten M, McKinley D. Global trends in medical education accreditation. Hum Resour Health 2021;19(1):70.

Sani Q, Oliveira MR. Educação superior e desenvolvimento na Guiné-Bis- sau: contribuições, limites e desafios. Rev Pedagógica 2015;16(33):127–52.

Ungerer R, Ito M. Relatório de avaliação do uso das Bibliotecas Azuis nos PALOP. Genebra: Departamento de Gestão e Intercâmbio do Conhecimento, Núcleo de Inovação, Informação, Evidência e Pesquisa, Organização Mundial da Saúde; 2010.

Ferrinho P, Fronteira I, Correia T, Neves C. The relevance of educational attainments of parents of medical students for health workforce planning: data from Guiné-Bissau. Hum Resour Health 2020;18(1):90.

Laranjeiro C. The Cuban Revolution and the Liberation Struggle in Guinea-Bissau: Images, Imaginings, Expectations and Experiences. Int Hist Rev 2019;0(0):1–20.

Frist B. Cuba’s Most Valuable Export: Its Healthcare Expertise [Internet]. Forbes [cited 2020 Jun 28];Available from: https://www.forbes.com/sites/billfrist/2015/06/08/cubas-most-valuable-export-its-healthcare-expertise/

Werlau MC. CUBA’S HEALTH-CARE DIPLOMACY: The Business of Humanitarianism. World Aff 2013;175(6):57–67.

Cole C, Fabio JLD, Squires N, Ebrahim S. Cuban Medical Education: 1959 to 2017. 2018;2(1):6.

The Internationalization of Higher Education: Motivations and Realities - Philip G. Altbach, Jane Knight, 2007 [Internet]. [cited 2020 Jun 9]; Available from: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1028315307303542

Huish R, Blue SA. Understanding the Place of Cuban Internationalism. Int J Cuban Stud 2013;5(1):6–9.

Ndlovu-Gatsheni SJ. Genealogies of Coloniality and Implications for Africa’s Development. Afr Dev Afr Dév 2015;40(3):13–40.

Mpofu B, Ndlovu-Gatsheni S. Rethinking and Unthinking Development: Perspectives on Inequality and Poverty in South Africa and Zimbabwe [Internet]. New York: Berghahn Books; 2019 [cited 2020 Jun 28]. Available from: https:// www.berghahnbooks.com/title/MpofuRethinking

Varghese NV. Globalization and higher education: Changing trends in cross border education. 2014;5:7–20.

Internationalisation and Trade in Higher Education | READ online [Internet]. OECD ILibrary [cited 2020 Jun 9]; Available from: https://read.oecd-ilibrary.org/education/internationalisation-and-trade-in-higher-education_ 9789264015067-en

WHO 1995. WHO Regional Office for Africa, World Federation for Medical Education. Cape Town Declaration. 1995

Mintzberg H, Waters JA. Of Strategies, Deliberate and Emergent. Strateg Manag J 1985;6(3):257–72

Woldegiyorgis AA. Harmonization of higher education in Africa and Europe: Policy convergence at supranational level. Tuning J High Educ 2018;5(2):133–57

Malisa M, Nhengeze P. Pan-Africanism: A Quest for Liberation and the Pur- suit of a United Africa. Genealogy 2018;2(3):28.

Decision A/DEC.4:01/03 relating to the adoption of the Convention on recognition and equivalence of degrees, diplomas, certificates and other qua- lifications In ECOWAS Member States. In: Official journal of the Economic Community of West African States (ECOWAS). 2003. page 89.

Woldegiorgis ET. Policy Travel in Regionalisation of Higher Education: The Case of Bologna Process in Africa. 2018.

Baggott R, Lambie G. Hard Currency, Solidarity, and Soft Power: The Mo-tives, Implications, and Lessons of Cuban Health Internationalism. Int J Health Serv 2018;49(1):165–85.

Gabriele A. Cuba: the surge of export-oriented services [Internet]. 2010 [cited 2020 Jun 9]; Available from: https://mpra.ub.uni-muenchen.de/26360/

Nienhüser W. Resource Dependence Theory - How Well Does It Explain Behavior of Organizations? Manag Rev 2008;19(1/2):9–32.

Dolowitz DP, Marsh D. Learning from Abroad: The Role of Policy Transfer in Contemporary Policy-Making. Governance 2000;13(1):5–23.

Shahjahan RA. Coloniality and a global testing regime in higher education: unpacking the OECD’s AHELO initiative. J Educ Policy 2013;28(5):676–94.

Shahjahan RA, Morgan C. Global competition, coloniality, and the geopolitics of knowledge in higher education. Br J Sociol Educ 2016;37(1):92–109.

Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. The Lancet 2010;376(9756):1923–58.

Celletti F, Buch E, Samb B. Medical education in developing countries [Internet]. Oxford University Press; [cited 2020 Jun 9]. Available from: https:// oxfordmedicine.com/view/10.1093/med/9780199652679.001.0001/med-9780199652679-chapter-57

Organisation Ouest Africaine de la Santé. Rapport de mission en Guiné-Bissau pour l’identification des besoins en Ressources Humaines et Equipements de Santé Bissau, 2016.

Mazzaccara A. Curriculum development for improving medical education at the Dogliotti College of Medicine, University of Liberia. 2015.

Sucuma A. A conjuntura do Estado e Ensino Superior na Guiné-Bissau. Estud Sociol 2017;1(23).

CEDEAO. Currículo Harmonizado de Formação em Medicina Geral no Es- paço CEDEAO. 2013.

Kushnarenko V. International Collaboration in Higher Education: The Canadian-Ukrainian Curriculum Development Partnership [Internet]. 2011 [cited 2020 Jun 9]; Available from: https://tspace.library.utoronto.ca/hand- le/1807/26420

Moore C. South Africa’s Relations with Latin America: an Opportunity Foregone? In: South African Foreign Policy Review. Africa Institute of South Africa; 2015. page Chapter 9 pp169-187.

Crush J, Chikanda A. Staunching the Flow: The Brain Drain and Health Professional Retention Strategies in South Africa [Internet]. Oxford University Press; [cited 2020 Jun 9]. Available from: https://www.oxfordscholarship.com/ view/10.1093/oso/9780198815273.001.0001/oso-9780198815273-chapter-16

OMS, Escritório Regional para a África. Roteiro para reforçar os Recursos Humanos para a Saúde com vista a melhorar a prestação de Serviços de Saúde na Região Africana 2012-2025. 2012.

Newbrander W, Waldman R, Shepherd-Banigan M. Rebuilding and streng- thening health systems and providing basic health services in fragile states. Disasters 2011;35(4):639–60.

OMS, Escritório Regional para a África. Quadro da Região Africana para a Implementação da Estratégia Mundial dos Recursos Humanos da Saúde (Força de Trabalho 2030). 2017.

Maciel K de F. O pensamento de Paulo Freire na trajetória da educação popular. Educ Em Perspect 2011;2(2):326–44.

Lima Vieira S, Silva G. Educação profissional em enfermagem: possibilidade de emancipação para pessoas residentes em comunidades vulneráveis. Rev Unifreire [Internet] 2015 [cited 2016 Apr 20];Available from: http://paulofreire.it/ files/ipf/Link/RevIsta%20Unifreire/2015/2015_revista_unifreire_3.pdf

Tavares M. A Universidade e a pluridiversidade epistemológica: a construção do conhecimento em função de outros paradigmas epistemológicos não ocidentocêntricos. Rev Lusófona Educ 2013;(24):49–74.

Sacadura CB. Estudos Sobre a Filosofia da Educação na Perspetiva da Ciência, da Arte e dos Valores. Coleç. Aula Magna 52016.

Publicado
2022-10-22
Como Citar
1.
Sá Guerreiro C, Neves C, Paulo Silva A, Ferrinho P. Evolução do ensino médico universitário na República da Guiné-Bissau 1985-2020. ihmt [Internet]. 22Out.2022 [citado 15Jul.2024];21:73-9. Available from: https://anaisihmt.com/index.php/ihmt/article/view/431