Relações históricas complexas entre animais e seres humanos: relatos da epidemia da “febre dos papagaios” na imprensa portuguesa
Resumo
As relações entre os seres humanos e os animais têm variado ao longo do tempo, para o que têm contribuído, entre muitos outros fatores, o progresso da humanidade, o desenvolvimento científico e tecnológico, a diversidade cultural e a forma como o animal tem sido considerado. Na contemporaneidade, consolidou-se uma conceção mais “humanista” do animal, afastada da visão cartesiana, segundo a qual os animais não passavam de máquinas desprovidas de senciência. A crescente preocupação com o bem-estar animal, que se já se observa nas sociedades oitocentistas e primonovecentistas, refletiu-se não só no plano relacional, mas também no surgimento das sociedades protetoras dos animais, na denúncia de violências e abusos sobre eles cometidos e até em debates sobre o tratamento que lhes é devido. Todavia, a relação de proximidade entre o ser humano e o animal não está isenta de riscos para ambos, designadamente sob o ponto de vista sanitário. Assim, as zoonoses passam a ser objeto de discussão e o animal, por ser um potencial transmissor de doenças, torna-se motivo de preocupação. Nesta reflexão pretendemos, essencialmente, abordar uma zoonose que ficou conhecida como “a febre dos papagaios”, que colocou em sobressalto as sociedades dos finais do século XIX e dos inícios do século XX. A prática de domesticar papagaios desenvolveu-se na contemporaneidade, sobretudo depois da Revolução Francesa, o que estimulou o comércio dessas aves, livre de quaisquer mecanismos de fiscalização, que terá estado, aliás, na origem daquela epidemia. Faremos, assim, a contextualização e a análise da evolução do processo de domesticação das aves e de outros animais, aludindo, em particular, ao caso de Portugal e às perceções existentes na sociedade portuguesa sobre os animais e a sua relação com os seres humanos. Para o efeito, recorremos à legislação pro-mulgada, à imprensa médica e aos periódicos generalistas, ao jornal da Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa, O Zoophilo, bem como a dissertações de médicos portugueses. O conceito de Uma só saúde demonstra a relevância da saúde animal para a saúde e o bem-estar humanos. Daí a necessidade de refletir sobre a historicidade da relação entre seres humanos e animais, que se intensificou na contemporaneidade, tendo em consideração as suas implicações.
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